quinta-feira, 30 de abril de 2015

Não me negue




Não me negue


Não me negue
senhor
esse cálice
deixe que ele seja comigo
seja pele órgão braço

aos que fugiram tenho dito muito pouco
tenho medo que vejam as novas flores que eu plantei
e que as pisem
vestidos de roupas tão tentadoras

caminho muito sozinho
mesmo ao lado de visitantes circunstanciais
que não percebem que no meu gesto fútil
no meu discurso fútil
no meu passo fútil
hoje nasce um novo Sol

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Fim de festa



Fim de festa



Na festa fiquei vazio
de mim e de todo o resto
escrevi por extenso um número na cabeça
em vórtice

disse qualquer coisa bonita
ao rapaz que não sabia
se ia ou se ficava
para ver a queda infinita dos meus olhos

me olho no espelho e me reconheço sim senhor
boca confusa quase vermelha
esse nariz fadado ao fracasso

ainda tive pouco tempo para o prepado do teu relatório
mas consegui muitos avanços na área de troca de nomes
já com os outros moços permaneci mudo mas com algum estranho charme

terça-feira, 28 de abril de 2015

Reencontro



Reencontro




Ando fascinado com a ideia do nosso reencontro velho amigo
deito-me costumeiramente sozinho
assento a cabeça no travesseiro
e vejo teu rosto
por trás da retina

a madrugada se desfaz em pequenos objetos na calçada fria ou pendurados em postes
como bandeiras
um resto de salto uma gota de suor
um anel
mas eles perdem seus nomes
na enxurrada de luz do dia

enquanto espero teu abrigo
conto as horas como se fossem estrelas
assim mostro ao meu corpo
quanto tenho sofrido longe do tempo

não este estúpido tempinho burguês que o relógio encerra
mas o grande tempo que nos rasga a carne
e nos afunda sem remédio
num inferno de flores

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Soneto 2


Soneto 2



Persigo o tom de amarelo
que combina com as tuas costas
eu disse e virei do avesso
encarei o vazio na janela do quarto

há um escuro
uma sombra de pedra que adormece o centro da cidade em cinzas
eu gostaria de fugir desse cheiro de sal
mas todos os dias me lavo ponho uma roupa que não me serve e lambo a poeira das calçadas

há uma certa dignidade nessa senhora
ela anda com os olhos de quem foge há muitos anos
e sua roupa desenha torpedos nos satélites

não segure a minha mão pois ando muito cansado
queria a sorte dos pintores e violinistas
já que não há escola que te prepare para os terrores de uma palavra

domingo, 26 de abril de 2015

Poema Contido




Poema contido




Converso um pouco
meço minhas palavras e o café de algumas tardes
para que meus olhos me obedeçam
a noite

uma canção para cada dia
ou o barulho das máquinas
afogando as paredes

planejo longamente minha cinebiografia
haverá dança e gargalhadas
e o público sairá satisfeito
de ver a miséria tão sabiamente transformada em cores
as cores em som
em tremeluzia

mas não posso controlar estas flores tortas
que nascem na calçada todo dia
lembrança constante da vida
tão claramente a frente

alongo este verso até que estejam mortas todas as begônias e rosas do jardim
e suspiro com saudade
enquanto finjo dançar pra que tu me queiras bem

sábado, 25 de abril de 2015

Seis da Tarde



Seis da Tarde




O trânsito de qualquer cidade
as linhas de fuga do meu sangue
aparelho excretor e cimento
simulo a madrugada na raiz dos meus pelos

há veneno nas paredes
de engano em engano cresci em volúpia
já nem mais te reconheço

numa mensagem fria
escrita no chão
Manoel deixou Clarice
e foi pular o carnaval
virou notícia de jornal

mas o que ninguém aplaude é a lágrima
é o medo
que rasteja todas as noites entre os teus seios

ninguém está realmente livre
se o invisível nos conecta

ligou o player no aleatório
e deixou que o caos da máquina esposasse o caos da noite que grita

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Corrente

Corrente



No sangue um negro
na pele um índio
no peito um fado

ou o sangue no Alentejo
as cicatrizes
nas costas
em cortejo
e o coração de quem foi roubado

se no samba me despenteio
se essa rima não planejo
partido alto e improvisado

é por que ainda sangra
esse meu corpo repartido
pelos meus sobrenomes surrado

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Joana e o Buraco




Joana e o Buraco




Joana encara o abismo
não será a primeira nem a última
a fugir
quando sua voz se dissipar
e eu por inteiro sorrir

na mesa de bar
onde esqueci meus cigarros
estava predito meu destino
na toalha molhada pelos copos
acredito nessas coisas

a memória da felicidade é este açoite
contamina até a mais comum das tardes
e olha que eu tranquei todas as portas
e pintei cruzes no chão da sala

mesmo assim não é fácil admitir
que o meu amor é este descarrilhamento
este desmoronamento sem fim
essa implosão

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Janela Nova




JANELA NOVA


Janela nova
de vidro
cortinas
que deixam entrever
o que não dá mais pra tocar

raiva e vazio
dentro do armário
dos olhos
sorrio pra você
ver meus dentes gastos

coragem não me falta
de me vestir de azul celeste
me sentar numa pracinha
e jogar dominó

mas alguma coisa aqui dentro não funciona
então me sento sozinho
com um poema na ponta dos dedos
e um sorriso
dolorido
na palma da mão

terça-feira, 21 de abril de 2015

A Máscara



A MÁSCARA


Não caminho cabisbaixo pela rua
não há tristeza nos meus passos
nem se adivinha uma lágrima subjacente
no tremor inconstante da minha voz

sob as pálpebras não pressentiriam meus segredos
se por acaso observassem meu sono tranquilo
mas apesar disso tudo desmorono

olho para o lado e sorrio aos companheiros
aos poucos que sobraram e suportam meu abismo
ou o desconhecem ou me desconhecem ou secretamente
me desprezam o que seria também compreensível

nas noites chuvosas e nas noites estreladas
me cubro de arte e martírio
mas ao meio dia não provoco suspeitas

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Noturno 4



Noturno 4

A noite aspergida nos muros nos prédios
as calçadas são tobogãs para a sarjeta
você carrega teu corpo devagar em frente aos bares
os olhos pesados a testa em chamas

o tumulto de palmas me leva a loucura
fecho meus olhos e procuro a canção
que eu deixei molhada na mesa fria de ferro

o tempo passa rápido quando estou no teu devaneio
longínqua amiga tua lembrança me consome
- a água escorre inexorável para o ralo

as luzes piscam nas portas e te chamam-
longe das estrelas até dá pra se esquecer
que na verdade não somos parte da peça
que ensaiamos desde quando abrimos os olhos

domingo, 19 de abril de 2015

Pedra



Pedra

Não me lembro de muitos nomes
ou das palavras que vieram antes ou depois
me recordo vagamente de gestos

não sei descrever caminhos
citar estradas
e tenho a estranha impressão de que não vão a lugar algum

sou doente de vento
tenho os pés abstratos
não sei ler placas

acordo sempre perguntando as paredes
quais palavras devo dizer
ao abrir a porta do quarto

sábado, 18 de abril de 2015

Soneto



Soneto

Todos os dias reponho as pedras no muro caído
é um trabalho sem esperança
com os olhos turvos do sal me levanto
e admiro a tarde que avança

sob meus cabelos hão de nascer novas flores
suplantarão as velhas pontes reviverão os quadros
ainda tenho boa voz de barítono
apesar do lábio já um tanto cansado

enquanto isso as vozes das portas
se colocam empertigadas
coletam apostas sobre minhas idas e vindas

e é mesmo uma completa verdade
que eu sou um pêndulo na casa vazia
com os cães em volta vacilando em vigília

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Diurna




Diurna

As viúvas de preto

as flores de vermelho
as avenidas de cinzas
os armários de mogno
as caroças de passos
lentos sob o sol de verão

a tempestade as gaivotas

os gritos na casa da morta

o sino do meio dia

a cabeça se esvazia

o pó da calçada

rasga a pupila dilatada

as sementes de milho

as colheitas de trigo
os nomes esquecidos
os hospitais os incêndios
devorando no caminho
até a voz guardada
no fosso da memória

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Sinos


 SINOS


A vida avança pelas beiradas
pelos becos e vielas meu passo
a cidade é vazia de mim por todos os lados
a cidade entre vidros e lágrimas
a cidade partiu meu coração

os teu olhos fingiram estrelas
o teu corpo simula verões
a vida sem signos percorre meus poros
costura minha pele meus ossos no chão

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Rendição


Rendição


Render-se
sob bandeiras sob lençóis
sob palavras
que traduzem verdades framentadas

o corpo ferido arde

compulsórios comprimidos
convulsionáveis

todos os homens morrem
todos os homens
todas as flores

rendidos até os ossos
até os fósseis

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Noturno 2

                                     
NOTURNO 2



A noite prossegue suja
no céu as caravelas lutam contra a maré
de estrelas
amareladas

no coração o som frio
do aço contra a pele
tudo tão distante e dolorido

as casas os homens os tanques de guerra
passeiam o meu corpo dos pés aos ouvidos

todos se agitam para a primavera

domingo, 12 de abril de 2015

Nascimento


                                       NASCIMENTO


O corpo que cai não é menos absurdo
nem menos triste

O corpo que cai não é menos tolo
nem menos belo

O corpo que cai também não é mais nada

com palavras escritas sob a pele
com relógios e bússolas hesitantes
com rotos gestos de paródia

a matéria eterna se lança da janela das possibilidades
e cai na calçada em chamas

absurdo tolo belo triste
e mais nada

sábado, 11 de abril de 2015

O Nome



Até tendo manter meus braços abertos
oh coro inacessível dos homens que veem

reconheço vossos labirintos
compartilho do vosso pão
mas não compro esse vinho

sob meus escombros não nascem girassóis

e por trás dos meus olhos
a cidade em pânico espera

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Soneto




Me espreita arranhando telhados
dou voltas e voltas com meu corpo em chamas
degola de toda calma gritar com os dedos
gritar pelas pedras pelas tintas pelas cores

a vontade passa quando há claridade
quando consigo ver teu corpo desaparece
teu peito branco como um pesadelo
teus olhos negros como a pele que me esconde

sempre há flores no jardins da culpa
seus matizes doem os olhos até a nuca
num corte abaixo pressinto a lama

amar e morrer viciar-se na sinuca
a voz cresce como pelos e machuca
disfarçada no teto uma vícera te chama

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Contra-Reforma

                             
  CONTRA-REFORMA



Quando os olhos se abriram
não havia mais nada

haviam levado as colchas a memória dos óbitos
predarias crianças futuras
e o fino bordado de um lábio franzido
num beijo que esperava atrás da porta

Quando finalmente arejaram a sala
perceberam que não havia mais nenhuma menina
olhando por longos minutos a parede borrada onde havia um rosto

Me pergunto se teriam encontrado um cordão ou um grão
que desenhasse os passos de dança
ou que contasse a história dos sorrisos

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Cinelândia


Cinelândia


Cidade de poros
sob os pés dos edifícios

triste fauna triste flora
de concreto de tábua
animais de aço auto motivados
pela secura

Cidade mucosa
atropelas tua língua na brisa dos cruzamentos

um senhor observa
absorve suas telas
os leds das tuas favelas

observa tua viva fonte severa
de uma nova cidade
no iluminar de uma treva

carregavam o corpo sob um holofote
tão frio
depuseram o peso dos pelos sobre o chão
tão frio

mas os olhos dos ônibus não tem lágrimas ou interesse

só uma menina na contempla da janela
o espetáculo da poeira de todo o dia
de todos os dias a cor e o perfume
dor e costume que um vestido escondia

um dia serei grão e rolarei docemente
sob os véus e sobre a pele
do teu corpo dormente

terça-feira, 7 de abril de 2015

ALEPH





A pequena esfera encerra cores absurdas
os hieróglifos invisíveis das palmas
revesou seu significado entre moedas e sentenças
também foi o presente para alcelmos e dirceus

continuou no mundo por obrigação de matéria
continuou a vista por força da circunstância
sua substância tênue resvalou a sarjeta e inúmeras fogueiras
inconsciente é claro de seu destino e história
tal qual seus companheiros
na plateleira do antiquário